Grafite e resistência na América Latina
- ivbatistella
- 16 de fev. de 2024
- 5 min de leitura
O potencial de denúncia na ocupação artística do território urbano e as formas alternativas de comunicação popular
Isabela Batistella

O rapper paulistano Criolo, em sua música “Não existe amor em SP”, define a cidade de São Paulo como “um labirinto místico, onde os grafites gritam”. Marca política e simbólica, essa arte urbana é uma forma de comunicação popular e alternativa capaz de ‘gritar’ contra as imposições estatais e das classes dominantes.
Em seu artigo sobre a estética política do grafite, Hely Geraldo Costa Junior, doutor em Design e mestre em Artes Visuais pela UFMG, entende o grafite latino-americano como uma ferramenta de visibilidade, inconformidade e resistência. Para ele, a ocupação da cidade pela arte é responsável por mudar as percepções do espaço. Além disso, é capaz de expressar os pensamentos de grupos que não possuem apoio financeiro, da política e da mídia de massa para se posicionarem.
Para a historiadora Priscila Pessoa, em sua tese de mestrado sobre o tema na UFSC, sua pesquisa a fez entender que “o ato de pichar e de grafitar muros pode ir muito além de diversão ou de questões estéticas, e pode sim agir como ferramenta de luta política”. Em contexto de ditaduras militares, a América Latina se torna responsável pelo terceiro grande momento do grafite contemporâneo, precedida por Paris (1968) e Nova York (1970).
Segundo Costa, no caso latino-americano, os grafites carregam uma luta legítima. É a ocupação da cidade por uma força que sai de suas margens, produto dos anos ditatoriais e do descaso neoliberalista. Uma forma de compreender a afirmação, é pensar na cidade como um discurso. Assim, a própria utilização dos muros como tela trazem uma marca política. Sua função é a de barreira, delimitação, e com a arte é possível transformá-la em discurso de resistência.
O grafite hoje é fruto de uma miscigenação latino-americana, e passa pela iconografia popular até o muralismo mexicano, com mensagens políticas, críticas sociais e anti-hegemônicas e até mesmo movimentos de aproximação com as artes plásticas, como explica Hery Costa. Para ele, a política está no desejo de participação, ação cidadã e autonomia. “Expressam a crítica e a insatisfação popular à ordem imposta”, afirma.
O grafite amplia as relações com o espaço urbano, acredita Costa. Olhar para ele é, portanto, produzir outros significados ao que é visto e reconhecido, como forma de reconstruir o olhar sobre o mundo.
O muralismo e o grafite
“Um dos fatores que também contribuíram para a intensificação dos grafites na América Latina, além dos processos de emancipação e da imigração, foi a pintura de murais em espaços públicos”, afirma Costa em seu artigo. O Muralismo, movimento mexicano desenvolvido a partir da Revolução de 1910, buscava lembrar um povo sobre a grandiosidade da sua civilização, passados séculos de opressão estrangeira e domínio oligárquico.
Os grafites se expandiram na América Latina durante a década de 80, informa Armando Silva em sua obra “Imaginários Urbanos”. Colômbia, Peru, Equador, Argentina, Brasil, Uruguai, México e Venezuela eram movidos pelas mesmas lutas: libertação, tradição guerrilheira, renovação estética e movimentos políticos universitários. Segundo a mestre em História Social, Carine Dalmás, também tinha a postura de recuperar a cultura popular, ao representar o indígena-camponês e, assim, o trabalhador.
No caso do Chile, surgiram as brigadas muralistas nos anos 70, influência da passagem do muralista mexicano David Alfaros Siqueiros pelo país. O movimento chileno se deu pela vontade de socializar a arte, relata Dalmás em sua tese de mestrado. Assim, se contrapunha ao individualismo burguês e a intelectualização elitista.
Ditaduras e resistências
Em entrevista para a BBC, o sociólogo Sérgio Miguel Franco conta que os desenhos nos muros de São Paulo eram influenciados pela cultura negra e latina, com um traço marginal. Desenvolvido pelos jovens de origem periférica da cidade, é conectado ao Hip Hop. O artista Prades também contou ao portal sobre como os anos de ditadura militar ressignificaram a arte em um grito pela liberdade da brutalidade ditatorial.
Pintar paredes com mensagens de protesto é uma prática antiga na história humana, segundo Priscila Pessoa. A arqueologia prova a presença no Egito Antigo, prisões do Império Persa, muralhas da Idade Média e no Império Romano. Já na Idade Moderna, o grafite foi utilizado como tela para as reclamações de trabalhadores insatisfeitos com as condições trabalhistas e manifestações políticas de resistência civil.
Os movimentos artísticos de vanguarda influenciaram o grafite no período ditatorial latino-americano. Tal qual os dadaístas, Pessoa interpreta como era importante não deixar a cultura presa nas galerias elitistas durante a ditadura civil-militar. O tom de denúncia precisava atingir toda a população, com a intenção de revolucionar o modo de se pensar a arte em comunicação com a sociedade.
Pessoa aborda em seu artigo que o movimento tinha um pé na vanguarda brasileira e outro no conceitualismo, cujo impacto na América Latina apresentou um caráter político de urgência, com a necessidade de transformação social contra as ditaduras militares. São exemplos o Brasil, Argentina, Uruguai e Chile.
A influência dessas manifestações, conforme a autora, estão no mesmo caráter efêmero, ao negar a arte como projeto autoral, além de fortalecer a cultura feita nas e para as ruas, contrariando espaços institucionalizados. Os muros e as cidades se tornam um quadro artístico, um campo de batalha para lutar contra a ditadura, uma “arte ideológica, mais preocupada com criticar a realidade do que com questões estéticas”, declarou Pessoa em sua tese.
O artista plástico Alex Vallauri é pioneiro e um dos maiores exemplos do grafite de resistência política. De ascendência italiana e nascido na Etiópia, o artista chega ao Brasil após morar por um tempo na Argentina com sua família. Paulo Klein, membro da Associação Brasileira de Críticos de Arte (ABCA), diz que as referências da Vallauri eram ídolos da música cubana, como Célia Cruz e Los Panteras.

Com símbolos da cultura de consumo, valorizadoras da forma e nunca do conteúdo, o artista criticou a elite burguesa. A bota preta foi o primeiro grafite realizado por ele, inauguração do movimento grafiteiro com o sentido de crítica no Brasil. Pessoa explica que em 1984, contribuiu com a campanha das “Diretas Já”, com a arte de uma arara verde e amarela ao gritar “já, já, já”. Para a autora, o spray era a arma na guerrilha cultural. Criticado por ter uma semiótica rasa, ela entende o grafiteiro como direto, livre de censuras e falsos moralismos, a fim de ser facilmente entendido pela população.
Ao refletir sobre o papel do grafite e das pichações na sociedade, Pessoa considera essa arte como “marcas das lembranças vividas, indagações que demarcam a existência de uma história que, quando apagados, acabam também por fazer sumir parte da cultura e da identidade de um povo que acabou sendo calado”.
Reportagem publicada em 08 de setembro de 2023 no portal Rombo Jornalismo, idealizado para a disciplina "Pensamento Jornalístico na América Latina", ministrada pela Prof. Dra. Maria Cristina Gobbi.
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