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Crise econômica e social na Argentina

  • ivbatistella
  • 16 de fev. de 2024
  • 17 min de leitura

Roda Viva entrevista o economista Fábio Giambiagi para entender a atual Argentina de Milei e suas repercussões

Isabela Batistella


Javier Milei, presidente eleito da Argentina — Foto: Natacha Pisarenko/AP
Javier Milei, atual presidente da Argentina. Foto: Natacha Pisarenko/AP

Durante as Primárias Abertas Simultâneas e Obrigatórias (Paso), processo eleitoral argentino, Javier Milei foi o candidato mais votado e eleito atual presidente da Argentina. O sucesso do candidato se dá pelo fracasso do peronismo – conjunto de ideias políticas de Juan Domingo Perón (1895 - 1974), presidente que governou o país de forma democrática (1946 e 1951) e ditatorial (1949) – e de Maurício Macri na presidência.

Ao ascender com um discurso de extrema direita, Milei aparece com o discurso de outsider (“fora” da política), que, em diferentes contextos, elegeu figuras como Bolsonaro e Trump. Javier Milei, contudo, realmente está por fora da política: é economista, mas não tem nenhuma experiência com gestão de cargos públicos, se classificando ideologicamente como ultraliberal e anarcolibertário.

Tomando a frente de uma Argentina em uma delicada crise econômica, com taxas de inflação que ultrapassam 142% por ano, o atual presidente argentino se candidatou prometendo a dolarização radical da economia e a extinção do Banco Central, além de diversas outras ideias radicais. Além disso, criticou com pouca educação e consideração o presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, afirmando até o corte de relações comerciais com o país (parceiros econômicos há décadas) e a saída do Mercosul, bloco econômico composto por Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai, fundado em 1991.

O programa de entrevistas da TV Cultura, Roda Viva, recebeu nesta terça-feira (28) Fábio Giambiagi, economista graduado pela UFRJ. Filho de pais argentinos, viveu em Buenos Aires até seus 14 anos de idade, quando sua família foi obrigada a voltar para o Brasil por conta do governo ditatorial argentino. Giambiagi é funcionário do BNDES desde 1984, e também trabalhou no Banco Interamericano de Desenvolvimento em Washington.

Os jornalistas entrevistadores do episódio foram Sérgio Lamucci (diretor executivo do Valor Econômico), Leda Balbino (editora de Mundo do jornal O Globo), Eleonora Gosman (correspondente do jornal Perfil, da Argentina), Luciana Dyniewicz (Estadão) e Alberto Gaspar (apresentador do Legião Estrangeira da TV Cultura).



  • Vera Magalhães (Apresentadora): Gostaria de começar pelo fato mais recente: recebemos desde domingo a futura chanceler argentina Diana Mondino, que veio ao Brasil portando finalmente o convite para que o presidente Lula vá à posse de Javier. Isso dá uma guinada no discurso violento que ele fez em relação ao presidente, anunciando até que poderia romper com o Brasil. Eu queria saber se não é muito cedo para essa guinada e se ela é suficiente para amainar a relação entre os dois países ao seu ver.

O problema com as manifestações do presidente argentino é que ele foi absurdamente duro com o presidente Lula dias atrás, e não seis meses atrás. Ele vai aprender que as palavras têm consequências. Você não pode dizer algo hoje e esperar que três dias depois isso seja esquecido.

Entendo a profunda irritação do presidente diante das manifestações absurdas que o Javier fez. Ele teve duas manifestações totalmente inapropriadas. Uma depois das primárias, quando foi entrevistado por aquele norte-americano ligado à direita. Ele falou: “não teremos relações com ditaduras comunistas, China, Rússia, Brasil.” E depois, já entre o primeiro e o segundo turno, uma associação empresarial chamou os dois candidatos, ele teve duas afirmações duras, inapropriadas sobre o presidente Lula. Isso acabou de acontecer. Acho que a vinda da futura chanceler foi muito apropriada, ajudou a amenizar, veremos se será o suficiente para o presidente ir ao dia da posse.


  • Eleonora Gosman (Jornal Perfil - Argentina): Os pesos na Argentina, de produtos alimentícios, subiram 50%, de um dia para o outro. Agora estão falando de ajustes, ajustes fiscal, da ordem de 15%. Seria 5% de gastos e 10% para aquela história de abonos do Banco Central. Você acha que isso vai ser possível, fazer esse ajuste na hora, de imediato, ou isso tem que ser moderado de algum jeito? O presidente está prometendo que tem que ser na hora.

O Milei economista, mas eu, modestamente, estou no métier [área de atuação], no estudo das nossas finanças públicas no Brasil há 36 anos. Olhando à distância, porque obviamente não conheço as contas públicas argentinas como conheço as brasileiras, me dá a impressão de que ele pode ser economista, entender muito de Escola Austríaca, mas de finanças públicas ele não entende absolutamente nada.

Depois de ser eleito, naqueles três ou quatro dias que ele fez um tour pelos principais programas de entrevistas, ele falou três coisas que beiram o inacreditável no sentido de desconhecimento da realidade das coisas. Primeiro, ele falou em cortes de 15% do PIB. Isso é um disparate. É como se uma pessoa que pesa 100kg fala que vai fazer regime e daqui a três semanas vai pesar 40kg. Isso não existe, é uma estupidez.

Segundo ponto. Ele falou, e com um argumento que não faz o menor sentido, que o pagamento do 13º salário do funcionalismo estaria em questão. Porque ele assume no dia 10, então naturalmente o jornalista pergunta: “ah, vai ter ajuste, mas vai pagar o aguinaldo, né, que é o 13º. Então ele falou: “vamos ver se tem dinheiro”. Pelo amor de Deus. Isso vai ser o paraíso dos advogados, porque a pessoa tem direito, inclusive porque no dia 10 o mês já iniciou, então suponho que qualquer advogado de quinta categoria consegue uma liminar ou algo assim para isso ser pago.

E ele falou uma atrocidade absoluta no ponto de vista jurídico, das finanças públicas, que ele iria zerar em janeiro o investimento público. [...] Nós vimos o investimento público quando é um ano de ajuste, como foi 1999, como foi 2003. O que o governo não pode cortar é aposentadoria, não pode cortar o pessoal. Então ele corta o investimento. Então em 2003, o investimento caiu o mínimo histórico, foi para 0,3% do PIB. Foi um ano muito doloroso, criou as condições para a recuperação. Mas zerar o investimento público é isso não existe, até porque se tem contratos. Você ganhou uma licitação dentro da lei, isso viola um contrato.

A impressão que me dá é que ele, ao longo da vida, nunca administrou nada. Não foi secretário da fazenda de um município, não foi governador, não foi senador, então ele está tendo uma espécie de curso intensivo de governabilidade e de governo, e aos poucos está começando a perceber os constrendes, né.

Eu diria que em linhas gerais ele está indo na direção correta, ao comparar as coisas que ele tem dito nos últimos três ou quatro anos, são coisas que fazem mais sentido do que os absurdos que ele disse ao longo da campanha ou nos dois ou três dias seguintes. Mas digamos que o que ele não aprendeu em 30 anos está aprendendo em 15 dias. Seria melhor que tivesse se preparado um pouco mais.


  • Sérgio Lamucci (Valor Econômico): queria que você desse uma dimensão do tamanho do desafio econômico que a Argentina enfrenta. Boa parte dos economistas diz que é fundamental corrigir os preços relativos, ou seja, ajustar o câmbio oficial em relação à taxa paralela, corrigir tarifas públicas, corrigir subsídios e fazer um ajuste fiscal forte. É possível fazer o ajuste fiscal, dando um tranco nesse ajuste e nessa correção de preços relativos, ou vai ser preciso fazer isso de maneira gradual? E quais os riscos de fazer de maneira gradual, que foi o que o Macri acabou enfrentando e que levou ao fracasso do governo dele?

Eu vou separar as questões, a questão fiscal e o tema da inflação. Vou começar pelo segundo. O desafio de vencer a inflação é dramático e se não for adequadamente encarado pode até derrubar o governo porque não dá pra conviver quatro anos com essa inflação instável.

Em relação à questão fiscal, eu tenho uma abordagem mais benigna do que a da maioria dos meus colegas, tanto aqui quanto na Argentina. Benigna no seguinte sentido: estou plenamente convencido, assim como todo mundo, de que é absolutamente imperioso e a tarefa número um fazer o ajuste fiscal. Mas não chega a ser algo dramático no seguinte sentido. A Argentina tem um déficit público menor do que o do Brasil. O drama argentino é que o país não tem crédito algum. Isso significa que quando a dívida vence, você tem que pagar e não tem dinheiro, como o caso extremo do FMI. Aí é preciso renegociar em condições humilhantes.

Vamos dar os grandes números. Estamos acompanhando o debate interno no Brasil sobre a meta do ano que vem, o déficit primário zero, que tudo indica que vai ser provavelmente o déficit em torno de 1% do PIB. O Sérgio Massa, Ministro de Economia da Argentina, fez uma coisa completamente indevida em relação a como devem ser as relações com outros agentes. Na sexta-feira ele fechou um acordo com o FMI, negociado durante meses exaustivamente, por meio do qual o déficit primário previsto para 2023 seria de 1,9% do PIB. E na segunda-feira, no primeiro dia útil posterior, chutou o pau da barraca, adotou medidas que dinamitaram o plano. Na prática, ele está gerando um déficit primário que estima-se estar na ordem de 3% do PIB.

É muito difícil vislumbrar uma saída da Argentina que não passe por um ajuste. As negociações com o FMI vão ocorrer, mas eu tenho para mim que possivelmente eles vão mirar um número muito parecido com a meta brasileira, em torno de um primário de zero. Num primeiro momento, claro que posteriormente, lá por 2025, 26, na linha ascendente visando superávits primários.

Mas então, respondendo à sua pergunta: o desafio fiscal é muito forte. Nós fizemos um ajuste de 3% do PIB em 1999, que foi doloroso, provavelmente talvez tenha custado a derrota do governo em 2002. Isso porque ajuste dói, mas conseguimos. Não é trivial, a gente sabe que cortar 1,5% do PIB é complicado. 3% do PIB, mais ainda. Mas é factível. Se fizerem isso eles terão meio caminho andado para o reconhecimento internacional.


  • Luciana Dyniewicz (O Estado de São Paulo): Continuando no ajuste fiscal como tema, você fala que é possível, né. Mas no caso da Argentina um ajuste fiscal significa tirar subsídios para serviços básicos. A gente pode imaginar um aumento de energia superior a 500%, e isso vai doer bastante na população. E foi um dos motivos que fez o Macri tentar uma estratégia mais gradual. Você acha que ele vai conseguir criar esse ajuste sem criar uma ebulição social? Quais impactos esse ajuste vai ter na vida dos argentinos?

Olha, quando se faz um ajuste dessa magnitude, de 3% do PIB, não há como ele ser concentrado em apenas um item. Você vai pegar os principais itens e cortar 0.5% do PIB daqui, 0.2% do PIB ali. Vai ser necessário aumentar algum tipo de imposto, querendo ou não, porque só com corte de gastos é difícil chegar a isso.

Não há como não mexer nesse sistema de subsídio porque é completamente absurdo. A gente sabe, até pela experiência brasileira, que dar um tarifaço é sempre ruim para a popularidade do governo. Lembremos um pouco a situação – muito mal comparada, porque era um desequilíbrio de preço relativo muito menor –, no governo Dilma, quando ela chama Joaquim Levy. Você deve lembrar que ele dá um ajuste forte de tarifas, e em determinado momento a inflação do item energia elétrica foi a 50, 60% em 12 meses. Isso puxou muito o IPCA de 2015, que foi até quase 11%. Isso esteve por trás da derrubada de popularidade.

Na Argentina, estamos falando de um ajuste tarifário muito maior, porque as tarifas são absolutamente ridículas, e em algum momento isso terá que ser endereçado. Há formas e formas de fazer isso. O que acontece com o sistema infernal que foi criado desde meados da década de 2000 é que esse sistema acaba beneficiando todo mundo, não só a pessoa de renda baixa que realmente precisa disso porque se não ela vai ter um poder aquisitivo muito deteriorado.

Então a tarifa é baixa para todo mundo – desde a pessoa que mora no equivalente das favelas de lá, até a pessoa que mora na Recoleta, e Palermo, que paga a conta de luz que é um décimo do que a gente paga e vive com três ar condicionados em casa, duas ou três televisões, etc. Ele precisa ajustar a sua base parlamentar, o que por enquanto é um enigma.


  • Leda Balbino (O Globo): Em um artigo que você publicou, me interessou a frase “Fora do peronismo, a Argentina não tem solução, com o peronismo, também não.” Então eu queria saber quais os caminhos Milei tem pra escapar desse destino, principalmente pegando o gancho que o senhor falou no bloco anterior – que ele tem uma bancada minoritária no Congresso.

O que está acontecendo na situação atual, a princípio, teoricamente, é a situação mais propícia ao sucesso de um governo não-peronista, no sentido de que se você comparar a força do peronismo de hoje do que quando assumiu Mauricio Macri. Hoje o peronismo está muito mais enfraquecido. Então haveria condição, ao contrário do que a frase sugere, de um governo não-peronista ter sucesso.

Agora o problema é que esse é um governo não-peronista muito peculiar, de um outsider total, que tem uma base parlamentar muito restrita. Então, ele e o início de coalizão que ele está montando vão ter que ter muita sabedoria, calma – e essas não são características que são atribuídas ao candidato até agora – para levar o barco a destino.

As condições estão dadas. Governadores não-peronistas hoje administram um número de províncias muito maior do que na época do Macri, uma eventual coalizão não-peronista teria muito mais força no Congresso hoje do que teve no governo Macri. Agora resta ver se o novo governo vai saber ou não administrar essa coligação de forças.


  • Vera Magalhães (Roda Viva): Fábio, esse fenômeno da extrema direita – com suas diferentes conformações ou vieses na economia –, ele tem isso, né? A pessoa surge ali com um histrionismo, até um histrionismo capilar no caso desses últimos, e ela vai se moderando em alguns momentos, mas sempre tendo momentos de recaída ao seu extremismo.

Com o Bolsonaro foi assim. Quando se imaginava que ele se moderaria, ele voltava a atacar as instituições, e com o Trump foi a mesma coisa. A gente teve momentos agudos no final desses dois governos de ataques às instituições, mas esses fenômenos, se não se moderam, perdem a eleição subsequente. Mas não morrem, como vemos agora com o Trump nos Estados Unidos. Que fenômeno é esse que é tão típico do século XXI, dessa extrema direita que mantém um certo elã, um certo charme, mesmo diante das evidências de que essas coisas são inexequíveis?

No caso da Argentina vamos ver porque é uma história que está começando a ser escrita. Acho – estamos falando de percepções muito iniciais – que ele terá um desafio. Não comparando, porque são realidades diferentes, algo similar ao que Bolsonaro teve quando deu uma guinada de 180 graus. Lembremos aquela frase do General Heleno sobre o centrão em 2018, cantando. Então ele dá uma guinada de 180 graus, se alia com o centrão, que é na direção oposta do que ele pregava como antipolítica, mas ao mesmo tempo, ele tem que manter aquela base fiel. Então adota um discurso contraditório. Na prática ele conseguiu manter a base fiel, disso não há a menor dúvida, e ao mesmo tempo conseguiu manter a aliança com o centrão.

No caso do Milei, ele tem um séquito de Youtubers, todos jovens, a maioria – pelo que eu constato assistindo eles –, extremamente despolitizados, profundamente ignorantes acerca da história, acerca do que aconteceu, inclusive sobre questões políticas contemporâneas. Mas absolutamente fanatizados e que ficaram pregando durante dois anos aquele negócio do contra-casta*. Agora, o Milei se alia com representantes da casta. Logo, ele vai ter o desafio de manter aquele elã, aquela pregação, mas ao mesmo tempo caminhar mais para o centro.

Eu acho que a partir do momento em que ele se junta com Mauricio Macri e Patricia Bullrich, eles dão um verniz de civilidade por um lado e de governabilidade por outro, que o puxa mais para colocar os pés no chão. Mas se será uma figura indomável – que por causa da cabeleira ele e os seguidores qualificaram ele como um leão, e agora estão dizendo que ele é um leão herbívoro (risada).


*Quando Milei se refere a “castas”, segundo o sociólogo e vice-diretor da Proyección Consultores, Francisco Martinelli, em entrevista para a CNN, ele se refere àqueles que criaram e definiram as bandeiras do peronismo [de esquerda]. Além disso, a reportagem também entende que se associa ao “establishment político e, acima de tudo, as duas grandes coalizões políticas: Unión por la Patria [do governista Sergio Massa] e aquela representada por Patricia Bullrich [Juntos por el Cambio]”, como avalia o analista político e ex-presidente da Associação Latino-Americana de Consultores Políticos, Carlos Fara.


  • Luciana Dyniewicz (O Estado de São Paulo): Há um otimismo – hoje falei com três economistas do mercado financeiro da Argentina – e eles estão otimistas justamente com essa indicação do Caputo e com essa aproximação do Macri, que parece que dá uma moderada nas políticas econômicas do Milei. Mas o próprio Macri não teve muito sucesso na sua gestão econômica do país. Seja por essa suposta moderação colocando o Caputo, ou com essa aproximação com o Macre, acha que esse otimismo é exagerado nesse momento?

Certamente. Mas eu gostaria de fazer a seguinte qualificação. Para quem temia uma dolarização caótica, que ninguém entendia como exatamente poderia ser, esses sinais de moderação são muito bem vindos. Então acho que essa espécie de euforia que o mercado argentino está vivendo – a bolsa está estourando, está na lua esses dias e um pouco ecoa aqui no Brasil – reflete um certo alívio diante da percepção de que “bom, entraram os profissionais em campo”. Agora, eu acho que as pessoas estão subestimando completamente o problema inflacionário na Argentina.

A inflação, como já foi dito aqui, que nos últimos 12 meses lá está em 140% ao ano. A inflação de novembro, que já estamos no fim, estima-se que seja em torno de 11%, e dezembro ainda não começou, mas por conta dos reajustes que a Eleonora comentou, já começam a ser feitas as primeiras hipóteses e os números são assustadores. Vão de 14% a 20% para inflação de dezembro. Então a inflação no começo de 2023 ainda não tinha estourado, era “moderada”, em torno de 6% ao mês. Não há como a inflação no começo do ano que vem não ser maior do que isso.

Eu tenho para mim que na altura de meados do ano, a inflação em 12 meses na Argentina vai estar acima de 250%. Não há lua de mel que resista a isso. O Menem (ex-presidente argentino), às vezes a gente se esquece, o Menem fez a conversibilidade um ano e meio depois de assumir. Mas ele era um enorme animal político, tinha todo o partido peronista coeso atrás de si, e tinha muito capital político para erodir, além de um cavalo preparado que depois veio a ser um plano muito bem sucedido. O que me preocupa é que não vejo ninguém pensando em esquema de desindexação na Argentina.

E uma coisa que aprendemos aqui no Brasil com aqueles planos todos fracassados entre os anos 80 e 90, de que você precisa ter as duas pernas – precisa ter a perna ortodoxa, do ajuste fiscal, política monetária dura, etc, etc; mas você precisa ter o componente de truque de desinflação que da noite pro dia muda completamente o sistema. E ninguém, ninguém, da nova equipe argentina, tem a expertise, os anos de densidade de reflexão que tinha o Gustavo Franco, um Pércio Arida, um André Rezende, quando deram origem ao plano real. Caputo nunca, jamais, pensou nessas coisas. Não vou dizer o Banco Central porque ninguém sabe quem vai para o Banco Central.


  • Eleonora Gosman (Jornal Perfil - Argentina): A Argentina tem mais de 40% de pobres, e isso foi a custo também da classe média. O que vai acontecer com essa classe média, que hoje está num nível de subsistência – está bem mas nem tanto –, a partir desse ajuste? Isso pode significar uma quebra social muito forte. Pode ter uma quebra do país?

Essa pergunta é chave. Em termos do ajuste em si, eu não me incluo entre aqueles que acham que um ajuste fiscal necessariamente é desastroso para a sociedade e etc. [Eleanora: Desculpa, estou falando especificamente da Argentina, sei que aqui no Brasil é diferente.]

Mas é o seguinte: em 1999 fizemos um ajuste fiscal de 3% do PIB, foi doloroso e etc, mas no ano 2000 a economia cresceu 4%, estavamos saindo da crise. (Depois veio a crise de 2001, problema da restrição energética, que são outros quinhentos.) Mas tudo vai depender da perspectiva de futuro que esse plano tiver.

Se for visto com algo que gera um sacrifício temporário, mas que lá na frente vai ter um horizonte de estabilidade, gerar novos investimentos, eu sou otimista. Potencialmente. Mas isso requer uma enorme dose de sabedoria da condução política, a capacidade de liderança do presidente, a capacidade de explicação, lembremos. Tanto Fernando Henrique quanto Lula, cada um com suas características e histórias pessoais, são excelentes comunicadores, apesar das linguagens diferentes.

O Milei ele potencialmente poderia ser. Ele criou uma relação de identificação com os jovens, em particular; que é uma coisa realmente impressionante, que só vemos um paralelo aqui no Brasil com a identificação de parte do eleitorado com o Lula e, enfim, por outras questões, com o Bolsonaro, que é um líder popular. Ele pode usar isso, mas ele tem que transmitir confiança e serenidade, ele tem que ser um Milei diferente do que ele foi na campanha. É uma história em construção, vamos ver se funciona.


  • Sergio Lamucci (Valor Econômico): Tem toda essa situação social e econômica muito complicada, e as medidas necessárias para corrigir os problemas tendem a ser dolorosas e impopulares – correção dos preços relativos, reajuste fiscal, tirar essa montanha de subsídios. Isso implica que 2024 vai ser um ano – você falou que talvez a inflação talvez bata 250% em 12 meses. O PIB vai ter uma queda forte. Isso é uma coisa mais limitada a 2024, ou essa combinação de inflação alta e atividade econômica em queda pode entrar em 2025, que é um ano chave, pois tem as eleições de meio de mandato em outubro de 2025?

Vamos voltar um pouco no tempo. Por que o Menem fez a convertibilidade em abril de 1991? Porque as eleições de meio de mandato, na dinâmica política da Argentina, são chaves assim como são nos Estados Unidos. É diferente o Brasil que acaba dois anos intercalados e nós elegemos prefeito, que é um pouco termômetro, mas não muda a realidade do Congresso que elegemos na íntegra a cada quatro anos.

Então, o calendário que, analisando friamente e à distância eu vejo, o Milei, se ele quiser ser reeleito, – e é razoável que queira –, ele vai querer chegar a outubro de 2025, quando são essas eleições, com a economia para cima. Então nos primeiros seis meses não há como fazer um plano de desindexação porque tem que botar ordem nessa bagunça, tem preços atrasados, tarifas atrasadas, câmbio oficial atrasado, então isso tem que ser liberado, claro que não da noite pro dia. [...]

Eu creio que entre o terceiro trimestre de 2024 e o primeiro trimestre de 2025, ele tem que fazer um plano de desindexação para chegar com a economia para cima na altura de outubro. Hoje, honestamente, não vejo ninguém nem com expertise, nem pensando no assunto. Agora, uma vez encaminhado a história do ajuste fiscal, correção de tarifas, etc, imagino que vai ter uma demanda enorme porque – enfim, pode até ter uma certa boa vontade de iniciar com o governo, mas se daqui há seis meses a inflação for de 10, 15% no mês, as mesmas pessoas que votaram no Milei vão querer, no limite, tirar ele. A paciência se esgota.


  • Luciana Dyniewicz (O Estado de São Paulo): Tem algumas análises apontando que a situação financeira do país hoje é parecida com a que deixou o Raul Alfonsín, e que seria mais difícil de resolver do que a de 2001. Você concorda com essa análise e como que se chegou em uma situação desta gravidade?

Não. Eu vou te contar uma história pessoal – em 2001 eu estava na Argentina. Lembremos, foi quando caiu De La Rua e o país teve cinco presidentes da república em coisa de 15 dias. E eu andava nas ruas – eu passei o Réveillon naquele ano, e foi o pior da minha vida – e você andava na rua e tinha a percepção física de que o país estava afundado. Imagina. Um cara é eleito presidente, dois anos depois renuncia; outro assume, dois dias depois, renúncia. Ninguém queria assumir o barco.

No dia 30 de dezembro eu fui jantar com um velho amigo, e lá pelas tantas chegou a hora da conta, ele falou: “vou te mostrar uma coisa”. Ele tirou um maço e tinha cinco tipos diferentes de nota – você deve lembrar daquelas moedas provinciais, os patacones, porque as províncias começaram a emitir sua própria moeda. Como se São Paulo emitisse um bandeirantes, o Rio de Janeiro emite uma moeda própria. E tinha quatorze moedas. E aí ele tirou um patacón da Província de Buenos Aires; o quebracho da Província de Chaco; dólar, obviamente, o peso argentino que formalmente ainda existia, e alguma outra moeda qualquer.

Agora não tem esse caos absoluto. E outra questão: não há indícios de sistema financeiro em situação de calamidade. Sistema financeiro até pelas crises anteriores, aparentemente está em uma situação razoável. Então assim, o que tem que fazer é corrigir preços relativos, atacar o problema fiscal – são tarefas enormes, mas eu vejo como menos dramáticas do que em 2001.

Em 1989, houve uma hiperinflação clássica que aqui por enquanto não há. Eu constato certa irresponsabilidade no uso do termo, embora a definição do que seja hiperinflação não seja clara entre os economistas, se é uma inflação de 50% ao mês, o que é exatamente tem mais de uma definição. Geralmente, eu associaria a uma situação de descontrole absoluto. Então, para você ter uma ideia, a inflação na hiperinflação do Alfonsin, que claramente foi uma hiperinflação – foi, no mês, 196%. Isso significa que aquilo que custava 100 no dia primeiro, custa 300 no dia 30. Não é uma inflação de 10%, 15%. E com o adendo de que cinco meses antes a inflação do mês tinha sido, se não me falha a memória, 7%. Então houve um estouro absoluto.

A Argentina está vivendo agora uma situação que o Brasil viveu e felizmente superou, em épocas anteriores. Mas é uma inflação – o termo pode soar absurdo, mas, “normal”. No sentido de que um mês não é dramaticamente diferente do anterior. Uma inflação de 11% não é muito diferente de uma de 12%. Agora quando a inflação é 7% em um mês, 15% no outro, 40% no outro, 100% – e aí é um caos absoluto, porque você não tem um elemento de referência para a definição de preços nas cadeias. E no limite, isso conduz à paralisia absoluta, e quando a economia se paralisa, na ponta se tem o efeito mais dramático de todos – que é saque no supermercado. Isso é o pavor de todos os governantes argentinos desde 1989. Não há, por enquanto, e esperemos que não haja.




Reportagem publicada em 29 de novembro de 2023 no portal Rombo Jornalismo, idealizado para a disciplina "Pensamento Jornalístico na América Latina", ministrada pela Prof. Dra. Maria Cristina Gobbi.

 
 
 

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