A bondade em uma sociedade corrompida
- ivbatistella
- 16 de fev. de 2024
- 4 min de leitura
“O Idiota”, de Fiodor Dostoiévski, e o retrato de uma sociedade manchada pela ganância
Isabela Batistella
“Acabo de chegar a Genebra com as ideias na cabeça. O romance já existe e, se Deus quiser, será uma coisa grande e talvez nada má. Eu gosto terrivelmente dele e vou escrevê-lo com prazer e inquietação”, disse Dostoiévski ao seu editor em 1867. O romance, escrito entre ataques de epilepsia, perturbações nervosas e viagens – fuga da Rússia, por conta de diversas dívidas de jogo –, o autor clássico da literatura russa e mundial constrói um dos personagens mais complexos e cativantes da história.
Seu protagonista, o epiléptico príncipe Liev Nikoláievitch Michkin é um idiota, e não por falta de inteligência ou eloquência. Na realidade, o rótulo é dado a ele por ser uma pessoa bondosa, empática e benevolente em meio a uma sociedade corrompida pela ganância. O personagem, baseado em figuras como Dom Quixote e Jesus Cristo – as quais Dostoiévski foi fascinado – tinha o intuito de representar um homem positivamente belo, que para o autor era um ideal longe de ser obtido.
Michkin, então, foi um desafio para o artista, que acreditava precisar transmitir um grau de evolução individual, com a abstenção do ego e a capacidade de se sacrificar para o bem alheio. Segundo Paulo Bezerra, tradutor direto do russo para o português-brasileiro, para o autor “sem a superação do egoísmo burguês pode-se inviabilizar a vida do homem na face da terra.”
O cerne de seu personagem, como definido ao longo da história através do seu amor por Nastácia Filíppovna, é a compaixão. O dinheiro é um elemento sempre marcante em toda obra de Dostoiévski, pois o autor acredita que o capital é um fator de reformulação, desintegração e destruição do psiquismo humano. Nastácia Filíppovna, talvez uma das personagens mais fascinantes da literatura russa, foi abusada na infância por Afanassi Ivánovitch Tótski, homem da alta sociedade e proprietário de muitas terras.
Mesmo após adulta, segue sendo sua “propriedade", mesmo que ela o torture psicologicamente. Assim, para ela, o dinheiro é um objeto de repulsa, haja vista que foi o motivo de sua desgraça e desencontro com o mundo. Por isso, a personagem zomba do dinheiro e de todos que fazem dele o objetivo supremo de suas vidas. Ela acaba por queimar 10 mil rublos (atualmente, R$ 545,00 em reais) para debochar de Gánia, homem que simboliza a hipocrisia e mediocridade burguesa.
Apesar de aceitar o capital de Tóstki, que está tentando “vendê-la” em casamento, pelo dote, para se livrar dela, Filíppovna afirma que “não o fazia, em absoluto, como pagamento pela desonra da sua virgindade, da qual ela não tinha culpa, mas simplesmente como recompensa pelo destino destroçado.” Míchkin, no momento em que bate os olhos em uma fotografia da dama, é subitamente acometido pelos sentimentos de empatia e compaixão, que o seguirão por toda a sua trágica trajetória de amor com Nastácia.
As personagens femininas de Dostoiévski como um todo merecem um destaque especial. Marcantes, complexas e dotadas de um intelecto aguçado que é, por vezes, utilizado como arma, as mulheres de seus romances não são meros personagens construídos para um romance supérfluo. Com histórias trágicas e únicas, a sociedade impõe a elas circunstâncias abomináveis.
Nastácia Filíppovna é revoltada com sua condição de humilhada, e segue uma trajetória com a mentalidade de que é uma pessoa corrompida, suja, que não merece o amor genuíno e puro do príncipe Michkin, a quem ela se refere como criança. Por isso, apesar de ser pedida em casamento por Nikolaievitch, ela foge com Parfen Rogójin, um herdeiro boêmio, e sua turma. Já em Crime e Castigo, a personagem feminina mais marcante é Sonia Marmeladova, descrita como sincera, caridosa e gentil, com uma pureza única, apesar de suas condições a obrigarem ao trabalho de prostituição para sustentar sua família e os vícios do pai alcóolatra e endividado. Apesar de uma “mulher caída”, é representada com toda a sua complexidade e pureza.
Uma das cenas mais fascinantes de O Idiota é o “leilão” de Nastácia Filíppovna, na primeira parte do romance. “Me avaliaram em cem mil”, exclama exaltada. “Porque tamanha sede apoderou-se deles todos,estão se despedaçando de tal forma por dinheiro que parecem tontos”, de forma a criticar com atitudes e palavras, além de desprezar a podridão da sociedade. Michkin, ao pedi-la em casamento no decorrer da cena, afirma que ele em si não é nada, e que ela saiu de um grande inferno, e pura.
Toda a trama do romance gira em torno da natureza humana e sua capacidade em realizar atrocidades por dinheiro, amor, ciúmes e status social. Míchkin é capaz de tocar o coração de todos os personagens: mesmo aqueles que o odeiam, admiram seu caráter e integridade. Rogójin, apesar de inicialmente seu amigo, é dominado pelo ciúmes que tem do amor de Nastácia Filíppovna por Míchkin, o que o leva à possessividade e à loucura.
As crenças filosóficas de Fiódor Dostoiévski transbordam em sua narrativa e nos discursos do príncipe epiléptico. Em destaque, a experiência do autor ao ser condenado à morte com vinte e oito anos em 1849 por participação no círculo de Petrachevski (grupo literário socialista) aparecem, assim como em Crime e Castigo. Ele foi absolvido nos últimos minutos, e conta através de Míchkin que “esses cinco minutos lhe pareceram uma eternidade”, e que os pensamentos se transformaram em tamanha raiva que teve vontade de que o fuzilassem o mais rápido possível.
A escrita de Dostoiévski é viva. O extenso elenco de personagens, todos complexos e retratos de alguma faceta da sociedade burguesa, possuem cada um seu arco de aprofundamento. Ao ler, você é transportado para a sociedade de São Petersburgo do século XIX, vivendo através de Michkin ou dos Iepátchin – família de um general, cuja esposa tem parentesco distante com o protagonista – de forma orgânica. Os eventos ocorrem mesmo quando o leitor não os está acompanhando, e os acontecimentos por vezes chegam ao espectador do drama por fofocas ou comentários.
Apesar do final trágico e insatisfatório, que não agradou a crítica da época, o livro tem a capacidade de suscitar a reflexão e empatia do leitor, mesmo com os personagens mais detestáveis da obra. Segue atual, apesar dos séculos de distância entre sua escrita e o hoje, e mostra com clareza os aspectos mais odiosos e amáveis da psique humana. O final avassalador e desconcertante encerra perfeitamente uma narrativa como essa, que visa expor a hipocrisia e podridão da gananciosa sociedade burguesa.
Resenha cultural produzida para a disciplina de Jornalismo Textual, ministrada pelo Prof. Dr. Francisco Rolfsen Belda.






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