top of page

CSA e a cultura do apreço pela agricultura familiar

  • ivbatistella
  • 16 de fev. de 2024
  • 8 min de leitura

Sustentação comunitária e economia associativa dos pequenos produtores agrícolas no Brasil


Isabela Batistella


Partilha dos alimentos na CSA Bauru (Fonte: Isabela Batistella)

“Sem a cooperação do consumidor, a agricultura familiar não tem futuro”, afirma a CSA (Comunidade que Sustenta a Agricultura), em seu site. Organizada pela sociedade civil, a iniciativa é mundial e surge com o intuito de valorizar o trabalho do pequeno agricultor e da agricultura familiar. Constantemente expostos a baixos salários, desvalorização do seu trabalho e falta de mão de obra, além do êxodo rural – pesquisas recentes do IBGE apontam que apenas 17,6% da população brasileira reside em zonas rurais –, a agricultura de pequena escala no Brasil (e no mundo) sofre com a precarização. Algumas das bases do projeto são a cultura do apreço e a ajuda mútua.

O livro “Agricultura Ecológica - Preservação do pequeno agricultor e do meio ambiente”, escrito pelo sociólogo Jurandir Zamberlam e pelo técnico agrícola Alceu Fronchetti, busca entender o processo de precarização desse tipo de agricultura. Na década de 60, o governo ditatorial brasileiro impôs os pacotes tecnológicos da Revolução Verde na agricultura, baseados no modelo químico-mecânico e biotecnológico. A justificativa para essa adoção, na época, era a de resolver o problema iminente da fome que, para Josué de Castro em seu livro Geografia da Fome (1946), estava atrelado às limitações da produção, mau uso dos recursos produtivos e baixa renda da população.

A Revolução Verde, portanto, pode ser definida como um período de geração de conhecimentos tecnológicos destinados à agropecuária mundial, sistematizados em pacotes tecnológicos e com objetivo claro de aumentar a produção e a produtividade agrícola no mundo, inclusive com tecnologias de genética vegetal, de forma a criar e multiplicar sementes ‘resistentes’ às pragas e mudanças climáticas, como explicam Zamberlam e Fronchetti.

Os autores também discorrem sobre os caminhos discutidos na década de 60 para elevar a produção. As opções eram a realização da reforma agrária, para que mais agricultores pudessem ter terra para produzir, tirando-as das mãos dos grandes latifundiários e evitando o processo de migração do campo. Ou, então, a adoção dos pacotes tecnológicos, sem mudar a estrutura de posse da terra, alternativa escolhida pela Ditadura Militar brasileira.

Durante a Conferência da Alimentação em 1996, em Roma, a FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura) reconheceu o fracasso da Revolução Verde em resolver a fome no mundo. “A pobreza é a maior causa de insegurança alimentar. Um desenvolvimento sustentável, capaz de erradicá-la, é crucial para melhorar o acesso aos alimentos”, segundo a ata da conferência.

O modelo tecnológico agrícola veio com diversos créditos socioambientais negativos. Sérgio Salles-Filho e Adriana Bin, em livro publicado pela Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária), refletem sobre o cenário agrícola no país. “O Brasil tem programas de agregação de valor à pequena produção e à produção familiar [...], mas embora importantes, são secundários dentro das políticas de fomento, além de desatualizados”, criticam.

Para os pesquisadores, há um legado de preconceitos com relação à pequena produção, fazendo com que sofra com as soluções oferecidas pelo Estado: seja a orientação da eficiência econômica produtiva para produtos cuja eficiência só ocorre em grande escala, ou pela integração da tecnologia incapaz de superar condições de renda familiar pouco acima da pobreza. Os autores acreditam que o mundo da pesquisa agrícola ainda se restringe à inovação tecnológica, herança do produtivismo da Revolução Verde.

Essa modernização tecnológica é chamada pelos pesquisadores de “modernização conservadora”, já que para Andrades e Ganimi, em seu artigo “Revolução Verde e a apropriação capitalista”, “do ponto de vista social, o processo de modernização da agricultura é extremamente desigual e excludente, responsável por privilegiar alguns poucos produtores, latifundiários, em detrimento de outros tantos pequenos produtores familiares”.

O Decreto nº 9.064, de 31 de maio de 2017, define “Unidade Familiar de Produção Agrária” (UFPA) como um “conjunto de indivíduos composto por família que explore uma combinação de fatores de produção, com a finalidade de atender à própria subsistência e à demanda da sociedade por alimentos e por outros bens e serviços, e que resida no estabelecimento ou em local próximo a ele”. O último Censo Agropecuário – realizado em mais de 5 milhões de propriedades rurais por todo o Brasil –, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2017, mostra que 77% dessas propriedades são classificadas como agricultura familiar, e 23% da área de todos os estabelecimentos agropecuários do país são destinados à essa agricultura, representando 80,9 milhões de hectares.


Dados referentes à porcentagem da agricultura familiar na produção agropecuária brasileira (Fonte: Censo Agropecuário 2017, IBGE | Edição: Isabela Batistella)

As estatísticas também demonstram que a agricultura familiar empregava mais de 10 milhões de pessoas em 2017, correspondendo a 67% do total de pessoas ocupadas na agropecuária e sendo responsável por 40% da população economicamente ativa.

Em análise da Embrapa sobre o censo, constata-se que o segmento responde por 48% da produção de café e banana; em culturas temporárias, por 80% da produção de mandioca, 69% de abacaxi e 42% da produção de feijão, entre outras. Além disso, a pesquisa coloca a agricultura familiar como base econômica de 90% dos municípios brasileiros com até 20 mil habitantes.


O trabalho da CSA 

Partilha dos alimentos na CSA Bauru (Fonte: Isabela Batistella)

Comunidade que Sustenta a Agricultura (CSA), é um termo traduzido do inglês Community-supported Agriculture – em tradução livre, “agricultura apoiada pela comunidade”. Segundo o mestre em Ecologia Aplicada Djalma Nery, são experiências de associativismo entre agricultores e consumidores. A ideia tem início com base na obra “Economia Viva”, de Rudolf Steiner, publicada em 1920.

Steiner traz a ideia de uma “Economia Associativa”, a partir de organismos com “senso de comunidade”, onde se reuniram no mesmo espaço produtores, consumidores e comerciantes, com decisões econômicas horizontais, conforme explica Nery em sua resenha “Agricultura apoiada pela comunidade e a “Economia Viva” de Rudolf Steiner”.

“Um princípio que rege as CSAs é a questão da produção de um alimento de qualidade livre de agrotóxicos e fertilizantes químicos, que respeite a natureza e promova a biodiversidade e a saúde do solo, e uma relação justa entre seres humanos”, afirma Nery. Assim, criam-se comunidades entre agricultores locais e consumidores, auxiliando questões logísticas como transporte, embalagem, conservação, e diminuindo os gastos.


Wagner Santos, diretor executivo da CSA Brasil e co-agricultor (Fonte: Isabela Batistella)

Wagner Santos é um co-agricultor na CSA Bauru – o que, para a organização, simboliza o que é comumente chamado de “consumidor” e possui esse nome por conta da política de parceria com a comunidade e o agricultor produtor – e parte da CSA Brasil como diretor executivo, entidade que fomenta e divulga a ideia do projeto pelo país. A entidade nacional organiza cursos e palestras com o intuito de divulgar a ideia para novos lugares que queiram começar uma CSA.

O co-agricultor explica que a ideia surge na Alemanha e ganha concretude no Japão, com um movimento chamado “Teikei” – baseado em enxergar a face do agricultor no alimento, e o produtor enxergar no alimento a face de quem vai se alimentar. Em artigo sobre o tema, Judith Hitchman explica que o modelo japonês ocorreu em 1970, resultado da contaminação por mercúrio (desastre de Minamata), onde um grupo de donas de casa japonesas começou a adquirir alimentos diretamente de agricultores orgânicos.

No Brasil, Wagner afirma que o movimento chegou na década de 90 em Fortaleza, mas não se enraizou. Posteriormente, em 2010, a ideia chega novamente por meio de imigrantes alemães no Brasil, e se concretiza no município de Botucatu. A ideia foi se espalhando pelo território nacional aos poucos, criando uma rede de mais de 200 CSAs no país.

Em Bauru, a CSA existe há 11 anos. Santos afirma que o papel do co-agricultor é voluntário, e passa por organizar dias de partilha dos alimentos recebidos até organizar a comunicação entre agricultor e co-agricultor, e falar sobre os ocorridos na horta. O grupo conta também com nutricionistas, com papel de explicar sobre alimentos de espécies diferentes, por exemplo. Além disso, há também a função de cuidar das finanças da CSA, para os recursos financeiros atingirem os agricultores.

Todos os agricultores parceiros em uma CSA são pequenos e/ou agricultores familiares. “Agronegócio tirou a palavra cultura da agricultura e acrescentou negócio”, constata Wagner. Para ele, esse tipo de agricultura não produz comida, e sim commodities e monoculturas. “A gente está vinculado à agricultura familiar, que nos entrega diversidade de culturas”, explica. Em 2022, ao longo do ano, a CSA Bauru teve mais de 60 variedades de alimentos diferentes.

A sustentação dessas comunidades agrícolas ocorre, portanto, pela clareza dos co-agricultores do que é necessário para manter a terra, o trabalho na terra e as pessoas que nela vivem. “São quatro níveis de sustentação, cada um de nós paga mensalmente um valor que representa uma parcela do todo”, explica. É um compromisso assumido por, no mínimo, um ano com esses agricultores. No início do mês se divulga o valor a ser contribuído, e semanalmente os parceiros recebem os alimentos, processo chamado de “partilha” da colheita.

“É uma relação de parceria na alegria e na tristeza, porque se tiver uma intempérie qualquer [...] e tiver menos alimento para partilhar, vai ser dividido o que conseguiu colher”, explica Wagner. Não é um vínculo de oferta e demanda, onde se recebe pelo pagamento, e sim uma partilha do que foi colhido.


Na CSA Bauru, a partilha dos alimentos ocorre toda segunda-feira, e é organizada pelos próprios co-agricultores (Fonte: Isabela Batistella)

Para o co-agricultor, o potencial de unir pequenos agricultores à comunidade é importante para cuidar de uma ferida na agricultura familiar. Os grandes atacadistas e atravessadores tratam o produto orgânico como um qualquer, apesar de ser perecível e sujeito a intempéries da natureza. Santos explica que o pequeno agricultor planta sem saber para quem vai vender e quanto tempo pode ficar sem renda no processo de cultivo. “Da forma como trabalhamos, ele já planta sabendo para quem vai o produto cultivado”, afirma.

Wagner também acredita que a informação é a melhor forma de fortalecer o pequeno agricultor. Para ele, a CSA une a sociedade civil com a realidade da agricultura familiar. Promovendo cotidianamente essa aproximação, é possível fazer as pessoas ficarem sempre cientes de tudo o que ocorre no campo e como é produzido o alimento a ser consumido.

Além disso, o agronegócio é predatório. Com a falta de apoio, Wagner vê que os agricultores acabam por desistir do trabalho na terra e passam a arrendar suas terras. No Ciclo de Visitas da ABAG (Associação Brasileira do Agronegócio), a Fazenda Santa Izabel em Guariba/SP tem como raíz do seu negócio assumir fazendas de agricultores que não conseguiram manter seus negócios, por meio do arrendamento. Assim, tem efetividade em marginalizar pequenos produtores e os retirarem do mercado através de um conglomerado.

“Vou arrendar sua terra por x reais, o agricultor familiar olha para aquilo e percebe que não conseguirá essa quantia vendendo seus alimentos, trabalhando de sol a sol, e entrega. Então é menos um na terra”, diz Wagner. “Se a gente enquanto sociedade civil não acordar para isso, estamos caminhando a passos largos para um momento que não volta. Esse êxodo rural não acabou, ele continua”, conclui.


Tecnologia nas produções familiares

Segundo Wagner, a tecnologia utilizada é a ancestral desenvolvida ao longo de séculos. É saber qual o casamento de culturas é o certo a se utilizar, qual planta inibe os predadores naturais de outras, e colocá-las lado a lado. A produção é como uma floresta. “Destruímos as florestas e aplicamos monocultura no campo. E essa monocultura no campo vira monocultura de pensamento. E aí a gente não aceita diversidade no prato e diversidade nas relações”, reflete o diretor executivo.

Para ele, no Brasil o cultivo de uma só safra não faz sentido. Os biomas mostram a necessidade das florestas – e a agricultura familiar tem reativado cada vez mais as agroflorestas. O portal WRI Brasil explica o sistema agroflorestal como uma forma de usar e ocupar o solo em que árvores são plantadas em associação a culturas agrícolas ou forrageiras. Assim, garantem a melhora dos aspectos ambientais e produtivos. Além disso, Wagner lembra ser possível plantar água – haja vista que as florestas são potenciais plantadoras de água.

Esse plantio de água se dá por meio da gestão de recursos hídricos em propriedades rurais, conforme o portal Transforma, da Fundação Banco do Brasil. É a combinação de conceitos de bacias e sub-bacias hidrográficas em conjunto com técnicas para aumentar a quantidade e qualidade da água, assim como uma melhor absorção de água da chuva pelo solo. “Estamos acabando com as florestas, por isso que a nossa água está acabando”, diz Wagner.


CSA Bauru (Fonte: Isabela Batistella)

Para o diretor executivo da CSA, a agricultura familiar é a base e fundamento de toda a cultura. Não acredita que ela é “alternativa” ou “sustentável”, como afirmam as pesquisas, e sim ser essa a agricultura verdadeira. Assim, a agricultura vista como convencional é “falsa, de isopor”, diz. “Tudo tem a ver com essa agricultura de verdade, e é dela que nós precisamos”.

A CSA, portanto, migra da cultura do preço para a cultura do apreço. “Nós temos apreço pelo alimento e por quem cultiva esse alimento. E a gente possibilita que essa comida seja cultivada através dessa sustentação comunitária”, conclui Wagner.



Reportagem publicada em 26 de setembro de 2023 no portal Rombo Jornalismo, idealizado para a disciplina "Pensamento Jornalístico na América Latina", ministrada pela Prof. Dra. Maria Cristina Gobbi.

 
 
 

Comments


bottom of page